Reprodução/Arquivo Nacional

Por Glauco Alexandre Lima

De 1964 a 1985, o Brasil viveu uma experiência histórica que moldou nossa trajetória política, econômica e social até os dias de hoje. Sob a égide, ao mesmo tempo, de uma cruel ditadura militar-empresarial e alinhado com os Estados Unidos-capitalismo em plena Guerra Fria, o país foi laboratório de um experimento social que combinava repressão política com o tal American Way of Life. O golpe de 1964, que depôs o governo constitucional de João Goulart, foi parte de um xadrez geopolítico em que Washington, temeroso da influência soviética na América Latina e de um projeto diferente da convivência social, não hesitou em apoiar regimes autoritários que garantissem a manutenção da ordem capitalista e as vontades da economia de mercado.

Não há nação que e por um período de duas décadas assim sem carregar suas marcas profundas por anos e anos. Se os 350 anos de escravidão e o genocídio indígena ainda vão reverberar por séculos no Brasil contemporâneo, a ditadura militar e o alinhamento cego aos Estados Unidos impregnaram-se nas instituições, na alma brasileira, na cultura política e na mentalidade de amplos setores da sociedade brasileira. Mais de 60 anos após o golpe, suas consequências ainda se fazem sentir, seja na forma de uma elite resistente à distribuição de renda e justiça social, seja no uso constante do fantasma da tal “ameaça comunista”, para deslegitimar políticas públicas voltadas à redução da maior tragédia brasileira: a desigualdade econômica, social e regional.

O Brasil da ditadura foi um país do agravamento dos contrastes. Enquanto aparentemente crescia economicamente — o chamado “milagre econômico” entre 1968 e 1973 impulsionou o PIB a taxas superiores a 10% ao ano — a desigualdade se aprofundava. O arrocho salarial, favelização urbana, a concentração de renda e a exclusão de milhões de brasileiros das benesses do crescimento tornaram-se a outra verdade oculta dessa narrativa.

Em 1970, enquanto a seleção brasileira do futebol encantava o mundo no México, os índices de pobreza e fome cresciam silenciosamente nos bastidores do “Brasil grande” propagandeado pelo regime. A censura sufocava artistas, intelectuais e jornalistas, enquanto o aparato repressivo torturava e assassinava opositores do regime. Tudo adocicado por Mickeys e muitos Patetas.

A influência norte-americana, que permeava desde a doutrina de segurança nacional até a cultura pop, consolidou-se nesse período. Como Caetano Veloso cantaria anos depois: “essa vontade fela da puta de ser americano” explica muito do fascínio das elites brasileiras pelo modelo Tio Sam e pelo ethos do self-made man, um deslumbramento por essa coisa jeans-Disney-Donalds. Da invasão da televisão, do cinema e da propaganda Yankee, ao avanço da industrialização sem sensibilidade para o drama brasileiro, o Brasil caminhava para um capitalismo periférico, atrofiado, dependente e subordinado às diretrizes estadunidenses.

Mas a ditadura também deixou legado de resistência. A luta dos trabalhadores, das comunidades eclesiais de base, dos movimentos estudantis e dos intelectuais forjou um caldo cultural e político que resultaria na redemocratização e na Constituição de 1988. No entanto, o autoritarismo paira sempre como uma tenebrosa sombra. A “mão de ferro” contra qualquer tentativa de distribuição de renda persiste, e a tentação golpista militaresca ressurge sempre que os privilégios das elites são questionados.

Se o comunismo foi o inimigo imaginário do ado, hoje ele segue como espantalho, mesmo quando o mundo se tornou mais ferozmente capitalista e globalizado. A retórica anticomunista, destituída de qualquer base real, ainda é usada para reprimir sindicatos de trabalhadores, artistas, acadêmicos e qualquer voz dissonante ao modelo ultraliberal que privilegia a privatização de tudo e a indecente concentração de renda.

O Brasil da ditadura foi um Brasil brutalizado, um freio ao avanço democrático e ao desenvolvimento inclusivo. O país que poderia ter sido a “bossa nova do mundo”, como um laboratório de criatividade, inovação e justiça social, viu-se asfixiado por um projeto que privilegiou o crescimento sem distribuição e a ordem sem liberdade.

Mas a história não está escrita em pedra. Apesar do avanço de um extremismo reacionário truculento, oco, mentiroso e que engoliu boa parta da direita valiosa e necessária. Apesar de todas as dificuldades e das novas formas de controle social impostas pelas relações hoje mediadas por tecnologias controladas por Big Techs abcedas por lucros a qualquer custo, a resistência segue pulsante. O Brasil segue sendo resistente como a boa nova do mundo. Inventivo, empreendedor, original, surpreendente, um país das bossas novas. E como também diz Caetano: – a bossa nova é foda!!

Glauco Alexandre Lima – Operário da Comunicação Social

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