Foto: Arquivo Levante Feminista/Via Brasil de Fato
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou, nesta quarta-feira (11), o relatório “Cartografias da violência na Amazônia”, apresentando análises sobre os dados oficiais das Secretarias de Segurança Pública, como sobre os feminicídios e mortes intencionais de mulheres. Assim como outros tipos de violência, nos municípios da Amazônia Legal, todos os crimes baseados no gênero são maiores do que no restante do Brasil. A taxa de feminicídios nos municípios da Amazônia foi de 1,8 para cada 100 mil mulheres, 30,8% superior à média nacional, que foi de 1,4 por 100 mil.
Quando se considera todos os assassinatos de mulheres, ou seja, não apenas aqueles classificados como feminicídios, mas também os homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, a situação é ainda mais grave. A taxa de mortes violentas intencionais de mulheres na Amazônia foi de 5,2 por 100 mil mulheres, 34% superior à média nacional, de 3,9 por 100 mil.
O Pará registrou a menor taxa de feminicídio entre os estados da Amazônia, mas segundo o documento, “esta informação pode estar enviesada pela baixa notificação de feminicídios nestes estados, ou seja, do total de mortes violentas de mulheres, um percentual baixo foi classificado como tendo sido motivado por questões de gênero ou violência doméstica. (…) Ou seja, é muito provável que partes destes assassinatos de mulheres fossem feminicídios que não foram corretamente classificados.” No Pará, apenas 24,5%, de todos os assassinatos de mulheres foram classificados como feminicídio, enquanto a média nacional foi de 35,6%.

Porque as mulheres amazônicas morrem mais do que as demais brasileiras?
O estudo levanta hipóteses sobre o elevado número de assassinatos de mulheres na Amazônia Legal, em relação ao restante do país, levando em consideração o processo histórico pelo qual ou a região”. Vale a pena a leitura completa, que publicamos na íntegra:
“Buscando compreender tal contexto, uma das hipóteses aventadas pela literatura tem relação com o processo colonizador muito particular pelo qual ou a região, majoritariamente masculino, marcado pelo silenciamento e exploração da mulher e sob uma perspectiva utilitarista, baseada em um olhar para a Amazônia como espaço provedor de matérias primas, sem preocupação com o desenvolvimento local.
Em uma perspectiva histórica, Chaves e César descrevem o processo de ocupação da Amazônia e argumentam que o ato de colonizar era uma função eminentemente masculina, de modo que as mulheres caboclas e indígenas sequer eram consideradas cidadãs. É somente a partir da Cabanagem no séc. XIX que as mulheres surgem na historiografia, ainda que timidamente. Com o início do ciclo da borracha a população da região cresceu substancialmente, ando de 323 mil pessoas em 1870 para 1.217.00 em 1910, população essa quase que exclusivamente masculina. A própria figura do seringueiro é retratada por Wolff24 como protagonista de uma sociedade patriacal baseada em relações violentas e para o qual a mulher não ava de mercadoria, podendo ser vendida, estuprada ou explorada sexualmente.
No mesmo sentido, Darcy Ribeiro argumenta que, diferente de outras frentes de expansão econômica, como a agrícola e a pastoril, nas quais predomina a migração de células familiares, nas frentes extrativistas, como no caso da borracha e da garimpagem, há uma presença predominantemente masculina, fato que estimula o estabelecimento de mercados do sexo e que envolvem práticas extremamente degradantes como o tráfico de mulheres, contextos descritos neste relatório no capítulo 4.
Neste sentido, o processo migratório e o modelo econômico de exploração do território parecem ter contribuído para aumentar a objetificação da mulher, ampliando ainda mais a sua vulnerabilidade. Além disso, estamos falando de uma população feminina majoritariamente negra, indígena e ribeirinha, cujos marcadores sociais se sobrepõem em camadas de vulnerabilidade e risco. Soma-se a este contexto os desafios relativos a regiões fronteiriças e a expansão do narcotráfico na região Amazônia, que impam novas dinâmicas às relações de gênero. Se historicamente o crime organizado também foi retratado como um campo dominado por homens, a partir dos 2000 temos o crescimento exponencial da população carcerária feminina, direcionando novos olhares e análises para este universo. Seja como agentes do mundo do crime, inclusive com protagonismo nos negócios criminais, ou por seus vínculos afetivos com homens faccionados, o fato é que o quadro que se desenha no séc. XXI permanece pautado pelas desigualdades de gênero e pela lógica patriarcal. Se no séc. XIX as mulheres eram vistas como propriedades dos seringueiros, hoje são vistas como propriedades de homens faccionados, sujeitas a punições duras caso não cumpram com as expectativas de gênero, tal como com a raspagem da cabeça ou das sobrancelhas – atingindo centralmente elementos da feminilidade – ou até mesmo a morte.
Por fim, a título de ilustração, o gráfico 9 apresenta a taxa de estupro/estupro de vulnerável por tipo de município, conforme classificação do IBGE, comparando as cidades que compõem a Amazônia legal com o resto do país. Em todos os contextos da região – cidades rurais, intermediárias e urbanas – registraram taxas de violência sexual mais elevadas do que a média nacional. A taxa de estupros na Amazônia legal foi de 49,4 vítimas para cada 100 mil pessoas em 2022, 33,8% superior à média nacional, que foi de 36,9 por 100 mil no mesmo período. A taxa de estupros nas cidades classificadas como rurais na Amazônia foi 31% superior à taxa nacional; nas cidades tidas como intermediárias a taxa se mostrou 16,7% mais elevada; e, no meio urbano, a taxa de violência sexual nas cidades da Amazônia foi 47,2% superior à média nacional.” (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Cartografias da violência na Amazônia. 2. ed. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/ publicacoes_posts/cartografias-da-violencia-na-amazonia-2a-edicao/.)