
A tarde se arreia pros lados do Jiquiriqui, canoinhas am nos olhos miúdos do homem tomado de mudez solene. Uma saudade corta até a última lágrima. O pai de Francisco arreda as garças dos olhos, murcha o derruir do dia, engole uma tristeza que vai ser sua também, caro leitor.
Sob um céu de lua ausente, o Gurupatuba desliza salpicado de estrelas distantes. Uma luz a mais vem do pescador laternando, beirando as águas. À noite, o animal do fundo vem beber um gole de ar e é surpreendido pelo arpão da fome.
Dessa vez, o grito foi dentro d’água. Um remoinho, um salto, a lanterna foca o barulho, o brilho azul esverdeado, o alvejado afunda.
Dois canoeiros fogem da água que lhes puxa, o redemoinho que atraiçoa está enfurecido. Feito um relâmpago, atravessam com a notícia de terem acertado uma coisa grande.
Francisco ofega no escuro, se bate, se segura como pode. O pai o ajuda na subida dos cinco degraus da escada de madeira puída. A vida vai desaparecendo, o desespero do pai se agiganta. Francisco tem o arpão cravado no peito.
O homem toma o remo, atravessa para a cidade, busca o médico antigo, o único que visitava Francisco, desde que a mãe, de uma tristeza doente, morreu, quando o menino ainda perto dos três anos de idade. A parteira, velha dona Ana, fez silêncio desde o nascimento de Francisco. O médico, dele também não dizia a ninguém.
As canoas, as rabetas, os pequenos barcos, que avam ao final das tardes, viam sempre aquele vulto na janela da casa sobre o rio. Francisco nunca fora à cidade. Era um jovem perto dos 18 anos de idade. Francisco morreu.
O vento roubou da boca do médico a contação e a arrastou por toda a cidade. Até as comunidades vizinhas e desvizinhas se comoveram com o desalívio do pai.
A notícia voou mesmo. A comoção e a curiosidade chegaram lá nas almas dos ribeirinhos da Ponta do periquito, do Miri, Curral Grande, Jacoara, Flexal, Jaburu, Jararecapá, Cabeceira, Piracaba, Curicaca, Nazaré, Livramento, Cuçaru, Piquiá, São Diogo, Seis Unidos, Bonsucesso, Jurunduba, Curralinho, Paituna, Cuieira, Campinas, Bom Jardim, Santa Rita, Cacoal Grande, Piapó e até mais para lá, não foram poucos os que se moveram.
Desobedeceram os perigos da curva acima do matadouro velho, enfrentaram os rebujos. Amolaram os remos na água. Fez-se uma procissão na direção da casa do morto. Vinham da Iha Grande, do lago Branco, São João, Taxipá, Papucu. Vieram de todas as águas, vieram todos.
Mas, qual foi a parte da fala que causou tanto assombro? Francisco tinha a cabeça de um peixe. Um homem com cabeça de peixe?!
Explicado estava. Por isso, dele só se via a sombra, o vulto no final das tardes. Por essa causa, nunca pisou os pés na cidade. Somente o pai visitava o mercado, o comércio, comprava sempre as precisões, papéis, lápis e cores.
A casa se rodeou de pequeninas embarcações, tomou-se de um entra e sai, um sobe e desce. Estendido sobre uma mesa rústica, o corpo do jovem que tinha cabeça de peixe.
O pai narrou perdidas vezes a história do filho. Nas tábuas das paredes se pregavam desenhos bonitos do fundo do rio. Paisagens submersas, acaris perfeitos, pirarucus brilhantes, tucunarés, Piranambus, sardas, aracus, tambaquis, pescadas, pacarés, surubins e tantos e tantas.
Francisco visitava o fundo das águas por horas, todos os dias. Não falava, não sorria, não chorava. Iniciou desenhando com carvão tudo o que via. Foi, então, que ganhou do médico os primeiros papéis e lápis. Francisco ou a desenhar seu mundo, suas visitas. Era o seu modo perfeito de falar.
A noite chegou entre rezas e converseiros. O corpo foi bonitamente preparado. Subiu uma lua triste, as águas do Gurupatuba estavam inquietas, houve quem dissesse que o rio chorava.
Deu-se a hora mais estranha. Os peixes também chegaram, se agitavam ao redor das pernas da casa, saltavam para Francisco. Brilhavam escamas, acendiam olhos-d’água, olhos de todas as cores. Chegavam barrancos esverdeados, fez-se um jardim de vitórias-régias. A frágil casa sentia o banzeiro vindo das águas, todos se arrepiavam, tudo se estremecia daquele clamor.
O pai consentiu com a ideia que foi a de todos. Vieram buscar Francisco. Foi a noite mais bonita do mundo. Pousaram o corpo do menino na água, as vitórias-régias o ampararam. Seguiu uma procissão de peixes brilhantes, uma fina música de nadadeiras, a lua se desmanchou por entre nuvens.
Lá longe, afundava o jovem morto. O pai estendeu os braços, desesperou mais uma vez. Francisco foi morar no céu dos peixes.
Edmir Carvalho Bezerra
Nascido em Monte Alegre – Pará, mora na capital, Belém.
Autor dos livros DIZERUDITO – Poemas, “Águas e Anoitecimentos”, “Breves Cartas de Amor“, “O que faço com esses Versos de Amor?“, “Eu tenho um segredo para as suas lágrimas – poesia infantil para adultos lerem” e, recentemente, publicou “O CADERNO DE BENJAMIM” – editora PENALUX, livro que não teve lançamento ao público por causa da pandemia.